quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Até que o avião comece a cair

A bolsa eu não solto!

O ser humano é comunista até ficar rico, feminista até se casar e ateu até o avião começar a cair. Deparei-me com essa frase em uma rede social, e não pude deixar de ficar encantado com tamanho poder de síntese, já que há nela tanto bullshit que eu não conseguiria destrinchar em tão poucas palavras. Não é à toa que quem compartilhou a postagem viu nela sentidos inauditos, de alguma forma misteriosa relacionados com “lei da atração”, “força do pensamento” e congêneres. Não posso condená-lo, no entanto; é que a confusão é tão grande que no final das contas cada um pode enxergar ali tudo o que quiser ver. Mas como destrinchar texto é a minha área, deem-me licença.

Vou começar pelo fim, por ser uma afirmação que eu já me cansei de ver debatida e refutada. Ela é muito empregada por teístas quando lhes faltam argumentos, como se atacar a honestidade de um ateu fosse prova da existência de algum deus. Trata-se, obviamente, de um exemplo da falácia conhecida como argumento ad hominem, isto é, um ataque pessoal. Se em uma situação de desespero um ateu invoca algum deus, isso seria a prova, senão de que esse deus existe, ao menos de ninguém é “verdadeiramente” ateu (e aqui já vai embutido outro embuste, que é a chamada “falácia do escocês”), e que, portanto, “todo” ateu seria hipócrita (mais uma falácia, dessa vez a da generalização). Observem que até aqui já contamos três falácias, e só analisamos um terço da frase…

A afirmação passa ao largo de vários aspectos da realidade. Senão vejamos: primeiro, parte-se do pressuposto de que todo ateu deva ter o mesmo comportamento diante do mesmo tipo de situação, o que não passa de apenas mais uma crença infundada; segundo, admite-se implicitamente que o comportamento de uma pessoa em desespero seja mais racional do que o dessa mesma pessoa no pleno exercício de suas faculdades mentais (pelo menos se estiver tentando, com isso, validar o posicionamento teísta); e em terceiro lugar, não se questiona o motivo pelo qual tantos ateus podem efetivamente agir dessa maneira. E o motivo é bastante óbvio: todos nós somos doutrinados, ao longo da infância, para acreditarmos em dogmas de que só a muito custo vamos nos libertando com o exercício do pensamento crítico; assim, é natural esperar que o grupo dos que se denominam “ateus” seja composto por pessoas nos mais diferentes estágios de amadurecimento emocional e intelectual, e a maneira como cada qual pode reagir diante da iminência de uma fatalidade não depõe contra a coerência desta ou daquela concepção filosófica. Ora, o ateísmo não faz (e nem poderia fazer, nas condições dadas em nossa sociedade) o mesmo proselismo que as instituições religiosas fazem, e isso deveria ser um motivo adicional para duvidar da veracidade das doutrinas religiosas, e não o contrário. Em nossa sociedade, o ateu típico já foi religioso, e deixou de sê-lo por meio de um convencimento racional. Nem todo ateu, é claro, se enquadra nessa regra; são eles as exceções que a comprovam. No mais, no que diz respeito exclusivamente ao ataque pessoal, seria útil observar que ele vale tanto para o ateu quanto para a maioria dos religiosos, já que eles também costumam se lembrar do seu deus só quando a coisa aperta. Se isso, no caso do ateu, é um sinal de que eles “no fundo” acreditam em deus, então, no caso do religioso, deveria ser uma prova de que eles “no fundo” são todos ateus… além de igualmente hipócritas. Mas é claro que isso não é um argumento que um ateu inteligente vá usar contra qualquer ideologia teísta.

O ataque contra a hipocrisia parece ser a tônica da frase como um todo. Com efeito, ela soa como uma denúncia do egoísmo supostamente intrínseco do “ser humano” em geral, que estaria sempre lutando exclusivamente em interesse próprio. Assim, ele seria comunista enquanto fosse pobre, uma vez que, nessa situação, consideraria o comunismo vantajoso; já não assim quando viesse a enriquecer. Mais uma vez, isso não depõe contra a justiça ou a viabilidade deste ou daquele sistema econômico ou de governo; apenas diz respeito a uma atitude que se supõe típica do “ser humano”. Mas nem sequer isso é verídico, porque vemos por toda parte pessoas pobres que têm horror ao comunismo. Da mesma forma, há intelectuais de esquerda em situação financeira relativamente confortável, pelo menos em comparação com a classe trabalhadora, mas esses são taxados de “esquerda caviar”, como se isso automaticamente desqualificasse seus posicionamentos. Está, portanto, mais do que provado que o comportamento que se atribuiu ao “ser humano” foi uma generalização precipitada; nem todo pobre é comunista, como nem todo solteiro é feminista, assim como nem todo passageiro de avião é ateu; mas analisemos ainda a questão da hipocrisia que se nos imputa. Quer dizer que um pobre, ao se declarar comunista, não pode nunca estar sendo sincero, pois estaria apenas agindo em interesse próprio; mas tampouco o novo rico pode ser sincero ao abandonar essa ideologia, pois estaria agindo da mesma forma. É curioso, no entanto, que não se fale em outras ideologias, o que pode sugerir que o pobre que defende o capitalismo, esse sim seria sincero. Nesse caso, e seguindo a mesma “lógica”, o único comunista realmente sincero deveria ser… o “rico”! O que, pode-se presumir, não é bem o que o autor da frase pretendia dizer.

Agora vejamos o que se afirma sobre o feminismo, porque de todas as afirmações, é a que me parece mais estranha. O que será que se quis dizer com essa de “ser feminista até se casar”? Quer dizer então que todo feminista é necessariamente solteiro? Que estranho poder transformador seria esse o do casamento sobre a concepção de igualdade de gêneros? E, uma vez que se fala em “ser humano”, isso valeria tanto para o homem quanto para a mulher? Será que as próprias mulheres, uma vez casadas, incorporariam uma ideologia sexista e passariam a lutar contra os direitos da mulher, ou pelo menos deixariam de lutar por eles? Não sei bem o que pensar a esse respeito, porque todas as hipóteses me parecem igualmente absurdas. O mais provável é que o autor da frase tenha pensado do estreito ponto de vista de um homem sexista que não suporta mais seu casamento. Ou seria o de uma mulher queixando-se do seu marido? Não parece ser esse o tom. De qualquer maneira, não serei eu que irei defender essa instituição, e quem quer que seja o autor de tão intricado pensamento, deve ele ter bons motivos para estar saturado dela, e isso, de qualquer maneira, não tem nada a ver com o que eu entendo por feminismo. Pelo contrário, o pensamento feminista também nunca teve uma relação muito de boas com o casamento monogâmico.


Se, por fim, tomarmos a frase em sua totalidade como uma denúncia de uma suposta hipocrisia de todas as minorias citadas, o sentido seria o de que não existem comunistas sinceros, nem feministas sinceros, nem ateus sinceros. Alguém que defenda a equidade social e de gênero, bem como a inexistência de deus, só poderia estar mentindo, e só o faria se estivesse ganhando alguma coisa com isso, ou pelo menos não estivesse perdendo nada ao fazê-lo, o que já não aconteceria, por alguma lógica abstrusa, caso viesse a ficar rico, ou se casasse, ou estivesse na iminência da morte. Seria de extremo interesse para a Psicologia estudar um tal fenômeno de massa que tinha até agora passado completamente despercebido. Mas desconfio que o interessante mesmo seria estudar a cabeça de quem realmente acredita nisso.

Quanto a mim, vou continuando ateu, feminista e esquerdista. Pelo menos, não tenho a perspectiva de ficar rico, não tenho a intenção de me casar, e nem ando de avião.

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