terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Por Linhas Tortas – os Dez Mandamentos e a Condição Feminina

(publicado originalmente na Usina de Letras, em 25 de dezembro de 2006)

Segundo uma anedota contada por uma freira salesiana, inquirido acerca do número de mandamentos da lei de deus, Joãozinho (sempre ele!) replica: “Depende. Para os homens, são dez; para as mulheres, nove”. Sua confusão deve-se ao mandamento nono, aquele que proíbe de cobiçar a mulher do próximo. Apesar da ingenuidade de Joãozinho, que desconhece o fenômeno, cada vez mais comum, da homossexualidade feminina, o que ele realmente não sabia (e com ele muita gente, mesmo dentre os religiosos, que em geral não estudam os livros que consideram sagrados) é que esse mandamento só existe para os Católicos Romanos e para os Luteranos (e igrejas delas derivadas) By Mauro Cesar Bartolomeu.
Em Êxodo 20, 2-17 encontramos o texto integral dos mandamentos, que transcrevo da respeitada tradução de João Ferreira de Almeida:
2 Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. 3 Não terás outros deuses diante de mim. 4 Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. 5 Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. 6 E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos. 7 Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão. 8 Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. 9 Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. 10 Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. 11 Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o santificou. 12 Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá. 13 Não matarás. 14 Não adulterarás. 15 Não furtarás. 16 Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. 17 Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”
O último mandamento se refere à mulher como a qualquer outro bem material comerciável, ao lado do escravo e do animal, o que era bastante natural para Moisés e seu povo; tratava-se, portanto, de um mandamento contra a cobiça em geral, e não uma reiteração, desnecessária, do mandamento contra o adultério, expresso no versículo 14 By Mauro Cesar Bartolomeu.
Sabemos que os mandamentos são dez porque é o que nos dizem as próprias Escrituras (Ex 34,28; Dt 4,13; 10,4) mas a divisão do Decálogo (em grego, literalmente, algo como as “dez palavras”) não é um consenso entre as diferentes tradições confessionais. Os israelitas, por exemplo, consideram o segundo versículo como primeiro mandamento, interpretando-o como um preceito de crer na existência de seu deus. Os versículos 3 e seguintes são unidos para formar a segunda “palavra”. Já entre os cristãos há duas tradições distintas: uma, a dos padres gregos, considera como primeiro mandamento os versículos 2 e 3 e o segundo os versículos 4 a 6; a outra foi estabelecida por Santo Agostinho com base no Deuteronômio, e considera o versículo 2 apenas como uma “introdução” ao Decálogo, e entende os versículos 3 a 6 como um único mandamento. Para obter o número dez, então, Agostinho divide em dois o versículo 17, fazendo surgir uma ampliação desnecessária e arbitrária do mandamento contra o adultério: se, no mandamento anterior, proibia-se o relacionamento sexual com a mulher alheia, agora proíbe-se até mesmo o simples desejá-la. No que concerne aos vv. 3-7, os Reformados, juntamente com os Ortodoxos, seguindo a primeira tradição, entendem como um dos mandamentos a proibição ao culto das imagens, que os Católicos e os Luteranos, seguindo Santo Agostinho, unem ao primeiro, como mera extensão da ordem de não adorar a outro deus. O resultado disso é que a proibição da idolatria é diluída no contexto, perdendo sua importância e vindo a ser, mais tarde, simplesmente excluída das versões “didáticas” dos mandamentos By Mauro Cesar Bartolomeu.
Poderíamos pensar que Agostinho, ao distinguir a mulher dos bens materiais, colocando-a numa categoria à parte, estivesse tentando “resgatá-la” da sua vil condição de objeto, muito tempo antes que ela conquistasse sua emancipação social. Seja qual tenha sido sua boa intenção (o inferno está cheio delas), o que conseguiu foi o oposto disso; primeiro porque a simples existência do mandamento parece excluir a mulher do círculo dos observadores da lei mosaica (já que o mandamento, como observou Joãozinho, era voltado para a comunidade masculina), e segundo porque, ao contrário do que fez com o texto contra a idolatria, acabou dando um destaque excessivo ao pecado de desejá-la, acarretando que ela fosse por mais alguns séculos associada a tudo o que era considerado pecaminoso e diabólico (visão essa que remonta ao Gênesis, em que a mulher aparece como aquela que se deixa seduzir pelo discurso da serpente e que induz o homem à desobediência e à “queda original”). A provocação é oportuna, pois ainda hoje não são raros os defensores de que a mulher deva ser submissa ao marido e de que, se “Deus” a tratou nos mandamentos como objeto é porque é de “Sua Santa Vontade” que ela continue sendo tratada assim. Entre os propugnadores dessas idéias conto inúmeros padres e pastores. Mas, afinal, o que é que padre entende de mulher? Pelo menos não deveria… Quanto aos pastores, sua especialidade não deveria ser cuidar de rebanhos By Mauro Cesar Bartolomeu?
Exige-se, tradicionalmente, que um texto dissertativo apresente uma conclusão no seu parágrafo final. Tudo o que posso concluir, porém, de toda essa confusão é que ela não existiria se Yaweh tivesse simplesmente se lembrado de numerar os mandamentos… Mas que distração dos diabos By Mauro Cesar Bartolomeu!

Nenhum comentário:

Postar um comentário