(publicado originalmente na Usina de Letras, em 25 de dezembro de 2006)
Segundo uma
anedota contada por uma freira salesiana, inquirido acerca do número de
mandamentos da lei de deus, Joãozinho (sempre ele!) replica: “Depende. Para os
homens, são dez; para as mulheres, nove”. Sua confusão deve-se ao mandamento
nono, aquele que proíbe de cobiçar a mulher do próximo. Apesar da ingenuidade
de Joãozinho, que desconhece o fenômeno, cada vez mais comum, da homossexualidade
feminina, o que ele realmente não sabia (e com ele muita gente, mesmo dentre os
religiosos, que em geral não estudam os livros que consideram sagrados) é que
esse mandamento só existe para os Católicos Romanos e para os Luteranos (e
igrejas delas derivadas)
.
Em Êxodo
20, 2-17 encontramos o texto integral dos mandamentos, que transcrevo da
respeitada tradução de João Ferreira de Almeida:
“ 2
Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da
servidão. 3 Não terás outros deuses diante de mim. 4 Não
farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos
céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. 5 Não
te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus
zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta
geração daqueles que me odeiam. 6 E faço misericórdia a milhares dos
que me amam e aos que guardam os meus mandamentos. 7 Não tomarás o
nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que
tomar o seu nome em vão. 8 Lembra-te do dia do sábado, para o
santificar. 9 Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. 10
Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra,
nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o
teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. 11 Porque
em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao
sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o
santificou. 12 Honra a teu pai e a tua mãe, para que se
prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá. 13 Não
matarás. 14 Não adulterarás. 15 Não furtarás. 16 Não
dirás falso testemunho contra o teu próximo. 17 Não cobiçarás a
casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo,
nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu
próximo.”
O último
mandamento se refere à mulher como a qualquer outro bem material comerciável,
ao lado do escravo e do animal, o que era bastante natural para Moisés e seu
povo; tratava-se, portanto, de um mandamento contra a cobiça em geral, e não
uma reiteração, desnecessária, do mandamento contra o adultério, expresso no
versículo 14
.
Sabemos que
os mandamentos são dez porque é o que nos dizem as próprias Escrituras (Ex
34,28; Dt 4,13; 10,4) mas a
divisão do Decálogo (em grego,
literalmente, algo como as “dez palavras”) não é um consenso entre as diferentes
tradições confessionais. Os israelitas, por exemplo, consideram o segundo
versículo como primeiro mandamento, interpretando-o como um preceito de crer na
existência de seu deus. Os versículos 3 e seguintes são unidos para formar a
segunda “palavra”. Já entre os cristãos há duas tradições distintas: uma, a dos
padres gregos, considera como primeiro mandamento os versículos 2 e 3 e o segundo
os versículos 4 a 6; a outra foi estabelecida por Santo Agostinho com base no
Deuteronômio, e considera o versículo 2 apenas como uma “introdução” ao
Decálogo, e entende os versículos 3 a 6 como um único mandamento. Para obter o
número dez, então, Agostinho divide em dois o versículo 17, fazendo surgir uma ampliação
desnecessária e arbitrária do mandamento contra o adultério: se, no mandamento
anterior, proibia-se o relacionamento sexual com a mulher alheia, agora
proíbe-se até mesmo o simples desejá-la. No
que concerne aos vv. 3-7, os Reformados, juntamente com os Ortodoxos, seguindo
a primeira tradição, entendem como um dos mandamentos a proibição ao culto das
imagens, que os Católicos e os Luteranos, seguindo Santo Agostinho, unem ao
primeiro, como mera extensão da ordem de não adorar a outro deus. O resultado
disso é que a proibição da idolatria é diluída no contexto, perdendo sua
importância e vindo a ser, mais tarde, simplesmente excluída das versões “didáticas”
dos mandamentos .
Poderíamos
pensar que Agostinho, ao distinguir a mulher dos bens materiais, colocando-a numa
categoria à parte, estivesse tentando “resgatá-la” da sua vil condição de
objeto, muito tempo antes que ela conquistasse sua emancipação social. Seja
qual tenha sido sua boa intenção (o inferno está cheio delas), o que conseguiu
foi o oposto disso; primeiro porque a simples existência do mandamento parece
excluir a mulher do círculo dos observadores da lei mosaica (já que o
mandamento, como observou Joãozinho, era voltado para a comunidade masculina),
e segundo porque, ao contrário do que fez com o texto contra a idolatria, acabou
dando um destaque excessivo ao pecado de desejá-la, acarretando que ela fosse
por mais alguns séculos associada a tudo o que era considerado pecaminoso e
diabólico (visão essa que remonta ao Gênesis, em que a mulher aparece como
aquela que se deixa seduzir pelo discurso da serpente e que induz o homem à desobediência
e à “queda original”). A provocação é oportuna, pois ainda hoje não são raros
os defensores de que a mulher deva ser submissa ao marido e de que, se “Deus” a
tratou nos mandamentos como objeto é porque é de “Sua Santa Vontade” que ela
continue sendo tratada assim. Entre os propugnadores dessas idéias conto
inúmeros padres e pastores. Mas, afinal, o que é que padre entende de mulher?
Pelo menos não deveria… Quanto aos pastores, sua especialidade não deveria ser
cuidar de rebanhos
?
Exige-se,
tradicionalmente, que um texto dissertativo apresente uma conclusão no seu
parágrafo final. Tudo o que posso concluir, porém, de toda essa confusão é que
ela não existiria se Yaweh tivesse simplesmente se lembrado de numerar os
mandamentos… Mas que distração dos diabos
!
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