sexta-feira, 13 de abril de 2018

Pater Noster


Com atraso de alguns meses é que recebo a notícia da polêmica em torno da tradução francesa do Pai Nosso. Sim, estamos falando da famosa oração que o Senhor nos ensinou, e da qual, de acordo com um grupo de crítica bíblica do Instituto Westar, apenas duas palavras seriam inequivocamente autênticas: “pai” e “nosso”. Conclusão que também me é duvidosa, uma vez que na versão de Lucas (Lc 11,1-4) não aparece nem sequer a palavra “nosso”…
La polémique: é a ANSA quem nos informa que em dezembro do ano passado a Igreja Católica da França alterou o trecho “não nos submeteis à tentação” para “não nos deixeis cair em tentação”, que é como aprendemos por aqui. De acordo com a agência de notícias italiana, a versão anterior fora adotada em 1966, mas sempre teria sido criticada “por sugerir que Deus era o responsável por submeter as pessoas às tentações”.
Foi o próprio Jorge Mario Bergoglio, vulgo Papa Francisco, quem teria pontificado que aquela não era uma boa tradução, posto que “o que nos induz à tentação é o satanás”. Dada sua infalibilidade nesses assuntos, seria recomendável que ele instruísse os autores dos evangelhos, ou quem sabe o próprio Cristo, porque esse texto tão comprometedor está lá nos originais. Sim, eu conferi.
Confesso que mesmo antes de aprender a diferenciar as conjunções aditivas das adversativas, e lá se vão boas décadas, já achava estranha a construção “não nos deixeis cair em tentação, MAS livrai-nos do mal”. O que esse “mas” está fazendo aí, se não há nenhuma oposição entre “livrar do mal” e “não deixar cair em tentação”? Qual não foi minha surpresa quando, depois de aprender os primeiros rudimentos de latim e de grego, fui percorrer o texto original do evangelho de Mateus (Mt 6,13), e notei que a conjunção de fato estava lá! Mais grave: ao destrinchar o texto, nota-se que ela está corretamente aplicada.
Assim ouvi entoar o canto gregoriano, em bom latim: et ne nos inducas in temptationem, SED libera nos a malo. E assim consta na minha Kainḕ Diathêke (o original grego do Novo Testamento, presente de uma das minhas inesquecíveis professoras da língua helênica): kaì mḕ eisenénkeis hēmâs eis peirasmón, ALLÀ rhŷsai hēmâs apò toû ponēroû. O texto de Lucas não contém a segunda parte do fraseado, mas conjuga o mesmo verbo eisenenkeîn, que vem a ser a forma de aoristo segundo do verbo eisphérō, formado pela aglutinação da preposição eis e do verbo phérō, o que quer dizer literalmente “levar para” (tive de consultar isso, é claro, pois infelizmente a gramática grega não é assim tão inesquecível quanto seus professores…). O verbo latino é bem mais claro, pois além de ser composto pela preposição in e o verbo ducĕre, literalmente “conduzir para dentro”, é também o étimo do nosso verbo induzir. A se julgar confiável o testemunho dos evangelistas, o que Jesus pedia ao Pai era que não o induzisse em tentação.
Pois bem, aí está a tal polêmica. Levando-se em conta que Deus é onipotente,  não me parece haver uma diferença tããão grande assim entre induzir em tentação” e “deixar cair em tentação”, já que de uma forma ou de outra tudo depende da intervenção da Sua vontade soberana. Confesso que não compreendo como seria possível alguma coisa acontecer contra a vontade de Deus, se Ele, além de onipotente, é o criador de tudo quanto existe. E nem me venham com aquele papinho de “livre-arbítrio”, que isso não cola… Por uma simples questão de lógica, ou bem não existe nenhum criador onipotente e onisciente, ou tudo o que existe é exatamente como esse criador quer que seja, incluindo aí todas as opções que possamos porventura escolher com nosso hipotético “livre-arbítrio” e todas as consequências inevitáveis dessas escolhas. Como abraço tranquilamente a primeira hipótese, todo embate teológico, para mim, não passa de questiúncula. Mas se é polêmica o que o leitor deseja, eu posso oferecer uma melhor.

Ficar espiolhando minúcias textuais, tarefa a que são afeitos os literatos e, com maior consequência prática, os juristas, é coisa que pode facilmente nos levar a reverenciar a letra, que mata, em detrimento do espírito, que vivifica, como nos diz o apóstolo. Em outras palavras, é preciso diligência e discernimento para se extrair do texto aquilo que o seu autor quis dizer”, o que exige, entre outros cuidados, a análise, ainda que perfunctória, do seu contexto. Ocorre que, ao se fazer isso no evangelho que serve de base para o estabelecimento do texto, as palavras de Jesus parecem dizer uma coisa muito diferente do que a tradição eclesiástica estabeleceu. Alguém aí já leu os dois versículos que vêm imediatamente antes do Pai Nosso? Vou facilitar para o leitor, transcrevendo as palavras do Cristo:

7Nas vossas orações não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por falarem muito, serão atendidos. 8Não façais como eles, porque o Vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lhe pedirdes.”

Mas faz algum sentido que Jesus acabe de ensinar que é inútil repetir mecanicamente palavras memorizadas e logo em seguida se ponha a ensinar uma oração que deve ser memorizada e repetida mecanicamente per omnia sæcula sæculorum? Ora, para sermos razoáveis, o contexto nos obriga a entender que a prece que se seguiu foi um improviso, e não um texto para ser memorizado e repetido ipsis litteris. O que Jesus provavelmente tentou dizer é que se deveria imitar sua atitude, ou seja, conversar espontânea e intimamente com Deus, da mesma maneira como se conversaria com seu próprio pai. Dessa perspectiva, portanto, aqueles que vivem repetindo “a oração que o Senhor nos ensinou” devem ter entendido tudo errado.


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