quarta-feira, 31 de maio de 2023

A palavra é... ordem

 


O conceito de ordem, em latim ordinis, em inglês order, em francês orne, em espanhol órden, em italiano ordine, os senhores estão anotando? Isso é o que já diria o ordeiro Capitão Nascimento, personagem central do aclamado Tropa de Elite (José Padilha, 2007), em uma passagem que até lembra o eterno ensinamento do não menos famigerado Professor Girafales: “dizia eu que a aritmética…”. Vou retomar o raciocínio.

Dizia eu que o conceito de ordem é proveniente da improvável área de conhecimento da tecelagem ou tecelaria. Com efeito, o radical ord-, que é panromânico, conforme nos ensina Houaiss, e como pudemos comprovar nos exemplos acima (de tal sorte que eu nem saberia dizer por que causa, motivo, razão ou circunstância terá ido parar na língua inglesa, coisa que aparentemente não aconteceu em outras línguas anglo-saxônicas), tem seu significado mais primitivo relacionado à ordem dos fios em uma trama, conexo ao verbo ordire, urdir; por extensão, passou a significar “fila, fileira, alinhamento” (notem a palavra “linha” ali no meio, senhores; vou pedir isso na prova); e só então a “classe a que pertence um cidadão; ordem (sacerdotal); posto, ordem de batalha” (onde essa “ordem” ainda não é um comando, mas uma disposição, um arranjo, uma organização metódica). Do sentido mais primitivo decorre o de “série de acontecimentos ou fatos que se sucedem; sequência, sucessão” e, dos derivados, as noções de “procedimento, técnica ou meio de se realizar algo; método, processo”, de “obediência às normas; disciplina” e, por fim, a consequente “determinação de origem superior, de autoridade; mandado, prescrição, ordenação”. A explicação de Antenor Nascentes é a de que para “por em ordem” é preciso “exercer o mando”, donde, pois, o verbo ordenar no sentido de “mandar”. Em Portugal, ordenador é também o que no Brasil ficou conhecido como computador ou simplesmente PC (do inglês personal computer), talvez porque ele comanda, manda e desmanda, como informa Gilberto Gil na canção Cérebro Eletrônico, do álbum homônimo de 1969.

Apenas para ilustrar algumas dessas acepções, suponham os senhores que um determinado personagem é alinhado ao ideário de uma personalidade política influente: isso quer dizer que ele engrossa as fileiras dos seus seguidores. Por uma casualidade do destino, o político é eleito presidente de uma republiqueta, e, por uma espécie de ordenação, o personagem alcança o posto de braço direito, digo, de ajudante de ordens, passando de pronto a receber (e a cumprir) das tais (mesmo as mais estapafúrdias, mas quem sou eu para julgar), isto é, torna-se um subordinado (não preciso explicar o prefixo latino sub-, né?). Apenas para dar colorido à narrativa, suponham que o personagem em questão seja um militar; um tenente-coronel, digamos, ou qualquer coisa que o valha na hierarquia (do grego hierós, “sagrado” e arkhé, “comando, autoridade”). Nosso personagem estaria pronto para participar das mais diversas tramas (urdiduras), tais como adulterar cartões de vacinação, tentar desembargar regalos retidos em uma alfândega ou efetuar depósitos em dinheiro vivo na conta de uma primeira-dama bonitinha mas ordinária.

Pois sim, senhores, do mesmo radical ord- derivam as palavras ordinário, no sentido de “conforme à ordem, à regra; usual, costumado” e que mais tarde viraria “medíocre, vulgar; mesquinho, reles, inferior; indecente, obsceno” e mais um monte de sinônimos que vão daí pra baixo (afinal, como ensinou nossa eterna Santa Rita de Sampa, tudo vira bosta), e extraordinário, que é literalmente aquilo “que foge ao usual, fora do comum; excepcional, notável; fabuloso, inacreditável”, e por aí afora. Como dizia Carl Sagan, afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias; mas se o homem de ciência conhecesse o noticiário político brasileiro, saberia que para cumprir ordens esdrúxulas, quanto mais reles, melhor. Houaiss informa, ainda, que o latim ordinarius também designava um “escravo que vigiava e mandava nos outros escravos”. Não espantaria que, no nosso exemplo hipotético, o ajudante de ordens comandasse um ou outro esquema fora das regras estabelecidas, repassando a outros subordinados as ordens recebidas do seu superior imediato. Claro que ele não seria o primeiro nem o último a aprontar dessas e de outras mais, o que apenas me faz lembrar que “primeiro” é um numeral ordinal

O leitor atento terá observado que em francês o radical parece ter sofrido uma modificação. De fato, a síncope da sílaba di do latim hipotético or(di)nare teria sido a origem do verbo ornare, que, de acordo com Francisco Torrinha, significa “aprestar, preparar, aparelhar; equipar, guarnecer; embelecer, ornar, pentear os cabelos; dar lustre ou relevo a, distinguir, honrar; gabar, elogiar, louvar, exaltar”. A língua portuguesa herdou o verbo ornar e seus derivados, além do radical orn- em palavras como adorno e exornar, mas também suborno, que originalmente devia se referir a algum tipo de ornamentação feita em segredo, por debaixo dos panos; o tipo de coisa que, quando flagrada, costumava ser recebida com louvores do tipo “bonito, hem?!”.


quinta-feira, 20 de abril de 2023

A palavra é... joia

 


A anedota é antiga: o personagem, que não devia ser um cidadão comum, já que estes, na época, não frequentavam esse tipo de ambiente, encontra um parlamentar no aeroporto, empurrando um daqueles carrinhos de malas, e o cumprimenta: “Tudo jóia, deputado?”, ao que este responde: “Não, metade é roupa”. Apesar de velha, ou por isso mesmo, ela merece uma atualização (um update, como preferem os falantes do brasileiro castiço): “Tudo joia, presidente?” “Não, metade é dinheiro vivo”.

Note o leitor que na primeira versão da história a palavra ainda possuía acento agudo, que ela perdeu na última reforma ortográfica, com todos os riscos que isso lhe trouxe de ser rebaixada à “mulher do joio” e, assim, dar azo a mais alguma piada de baixo quilate. Antes que isso aconteça, comecemos por separar o joio do trigo: este, o Triticum aestivum, originário do Oriente Médio, é o cereal mais presente na alimentação humana desde a Antiguidade, é rico em amido e seu nome vem do latim triticum, derivado por sua vez de tritus, que significa “moído, triturado” e de onde nos vêm triturar e atritar. Quanto ao joio (Lolium temulentum), costuma crescer no meio das plantações de trigo, sendo inclusive chamado de “falso trigo”, dada a semelhança morfológica entre as duas espécies, pertencentes, ambas, à família das gramíneas. O que permite diferençá-las é que, na maturação dos frutos, as espiguetas do trigo adquirem coloração castanha e apontam para cima, enquanto o joio produz espiguetas mais delgadas e escuras, que tombam para o lado. Ou seja, só é possível distinguir uma da outra depois de uma certa fase de crescimento, e isso explica e justifica a parábola bíblica.

Favor não confundir o joio com o shoyu, o tradicional molho de soja japonês, cujo nome deriva do chinês shi-yu, composto de shi, “grãos salgados” e yu, “óleo”. Tampouco pense o leitor menos dotado de dons culinários que ele possa ser substituído pelo nosso corriqueiro óleo de soja, porque aí vai errar rude. Ainda sobre o joio, consta ser um narcótico devido a um fungo endófito que geralmente o infecta, e que produz toxinas e o alcaloide lolina, isolado pela primeira vez nessa planta, chamada lolium em latim. Por isso o “temulentus” do seu nome científico, que em latim quer dizer “bêbado”. O usuário deve ficar Ben 10, mesmo, capaz até de tentar passar por uma alfândega internacional sem declarar uma caixa de 16 milhões de reais no fundo da mala! Essa alfândega, a propósito, é outra daquelas palavrinhas árabes como alface, álcool, algodão, almôndega, alcova, alambique e alicate, introduzida na Península Ibérica durante o domínio islâmico. Sim, também os alvarás e os tão decantados algoritmos, esses que hoje servem mais para espalhar esse anglicismo terrível que atende pelo nome de fake news.

Mas voltemos ao assunto, porque a joia não tem nada quer ver com nada disso. A palavra, bem antes de chegar ao registro informal da nossa língua, nos veio do francês joyau, que já significava qualquer “objeto de matéria preciosa”. No francês antigo era joie, que, no moderno, significa alegria, o que aponta para o fato de elas serem formadas pelo mesmo radical. Não por acaso, “precioso” e “apreciar” são também parentes, derivadas do latim pretĭum, “preço, valor”. Não esqueçamos que “apreciar”, assim como “estimar”, tanto significam “ter apreço” quanto “avaliar, julgar”, ou seja, ponderar o valor de algo ou alguém. E “ponderar” nos vem do latim pondus, ponderis, que quer dizer “peso”. Já ouvi que as malas do ex-presidente valem seu peso em ouro. E em diamantes, claro, que são eternos. O mesmo já não se pode dizer do seu proprietário, que, se por acaso vale seu peso, sê-lo-á, por certo, em matéria bem menos nobre.

Já o diamante vem do latim vulgar diamas, diamantis, provável corruptela do latim clássico adămas, adamantis, por sua vez proveniente do grego adámas, adamantos, no sentido de “metal inalterável, duro”, também sinônimo de aço. Nem é preciso ser particularmente fã da Marvel Comics para ter lembrado agora do esqueleto de adamantium do Wolverine. A composição dessa liga metálica fabulosa não é conhecida, mas a origem do nome garanto que é essa aí. De resto, o termo grego também é empregado como adjetivo, no sentido de “inflexível, inquebrável”, assim como esperamos que seja a justiça brasileira em casos de contrabando de peças de joalheria por autoridades do alto escalão do poder executivo. Taca-lhe pau, Xandão!

segunda-feira, 20 de março de 2023

A palavra é... xeique

 



“Xeique”, forma registrada em todos os principais dicionários da língua portuguesa, é o mesmo que xeque ou sheik. Apesar de todas elas serem registradas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, a última é considerada estrangeirismo. E, apesar de o Manual de Comunicação do Senado recomendar a forma “xeique”, os brasileiros, sempre entusiastas da língua de Shakespeare, que eles nunca leram, preferem “sheik”, mesmo. Assim é que a palavra ganhou as redes sociais para alcunhar a ex-primeira dama da nação, que já foi Micheque (no caso Queiroz), depois Micash (quando vieram à tona os gastos no cartão corporativo), e que agora é Miss Sheik, por conta das joias dadas por um tal Mohammed bin Salman, que, além de príncipe herdeiro da Arábia Saudita, é também vice-primeiro-ministro, ministro da Defesa e presidente do Conselho de Assuntos Econômicos e de Desenvolvimento. Não é pra qualquer um, não! Ele ainda é chefe da corte real da Casa de Saud, e não pensem que isso seja algum hospital ou plano de assistência médica: trata-se da dinastia no poder desde a criação do país, em 1932. Só faltou mesmo ser cambista de ingresso do circo romano. Ou, vá lá, do Estádio Internacional Rei Fahd, em Riade.

Há muita confusão entre termos como “emir”, “califa”, “sultão”, “vizir” e “xeique”, mas como os dicionários não parecem ser a melhor fonte para esclarecer essas nuances, será mais prudente não nos aprofundarmos nisso por aqui. Para nosso objetivo, basta notar que qualquer uma delas serviria, em princípio, e que a escolha por “xeique” foi apenas pelo aspecto sonoro que possibilita o jogo de palavras.

Como vimos, “xeique” e “xeque” significam a mesma coisa, e esse “xeque” não deve ser confundido com “cheque”, que vem do inglês to check, “inspecionar, conferir, verificar”, donde nos vem o simpático “checar”, e que, no nosso caso, se refere a outro escândalo da mesma família. “Xeque” é a palavra que designa o ataque ao rei no jogo de xadrez, e portanto é a mesma da expressão “xeque-mate”, do persa xāh māt, que quer dizer “o rei está morto”. A palavra vem do persa “xá”, denominação atribuída aos antigos monarcas iranianos, e também não deve ser confundida com “chá”, a qual, por sua vez, vem do mandarim. Também não façam associações espúrias entre a expressão persa e o nosso “chá mate”. Esse mate vem do espanhol mate, que no século XVI designava uma “cabaça vazia para vários usos domésticos, particularmente, para tomar erva-mate”, derivada por sua vez do quíchua mati, que quer dizer “cabacinha”. A erva em questão é a Ilex paraguariensis (ao pé da letra, o “azevinho paraguaio”), que Humberto Gessinger canta na canção de mesmo nome, no disco Simples de Coração, de 1995.

Ah, também não confundir o xeique ou o sheik com o shake de milk-shake. Essa já é uma bebida completamente outra, e vem, é claro, do inglês to shake, "agitar, sacudir, tremer", e por aí afora. Quanto ao nome Shakespeare, esse sim vem de shake speare, algo como o “brande lança”, provavelmente o apelido de algum antigo guerreiro bretão.

domingo, 28 de outubro de 2018

O Retorno de Saturno



Em It: A Coisa (adaptação para o cinema do livro homônimo de Stephen King) conhecemos a história de uma cidade do Maine que é atacada a cada 30 anos por um ser identificado apenas como “A Coisa” e apresentado na pele de um palhaço. Já em terras tupiniquins, a coisa parece atacar a cada 29 anos. Em 1960, chamou-se Jânio “Vassourinha” Quadros; em 1989, foi a vez do “Caçador de Marajás”, e agora é o próprio “Coiso”, com a mesma ascensão meteórica e (quase) inexplicável dos outros dois. Isso pode malassombrar o país, especialmente as regiões Norte e Nordeste, mas certamente não o estado de São Paulo, que parece nutrir uma simpatia por palhaços (ou não teria eleito Tiririca pela terceira vez, além de, pela primeira, uma dúzia de outras figuras tão ou mais histriônicas ― tudo leva a crer que uma delas chegará até ao governo do estado).

É sabido que nós, taurinos do primeiro decanato com ascendente em Capricórnio, não acreditamos em astrologia, mas são em horas como essa que chego a me perguntar se não haverá algum fundo de verdade no tal retorno de Saturno. É, diante do absurdo, a resposta mais irracional pode ser a que faz mais sentido.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Entenda a Diferença entre Voto Útil, Voto Nulo e Voto Contra



Todo mundo já conhece a diferença entre voto branco e voto nulo: são aqueles que não têm mais diferença nenhuma depois da invenção da urna eletrônica. Mas qual a diferença entre o voto nulo e o voto contra? É que o voto nulo também é um voto contra, mas é mais genérico: ele é contra todos os candidatos igualmente, enquanto que o voto contra, propriamente dito, é contra um candidato específico. Ele acontece quando a rejeição a um candidato A é muito maior que a rejeição a um candidato B. Ou C, ou D, tanto faz. Por isso é que faz muita diferença dizer que votou no Aécio ou que votou contra a Dilma. Ou vice-versa.
E quanto ao voto útil? Bom, voto útil é aquele em que você deixa de votar no candidato que você aprova, para votar em um que você rejeita mas que pode impedir a vitória de outro que você rejeita mais ainda. Quer dizer que o voto útil também é um voto contra, e o voto contra também é um tipo de voto útil. A principal diferença é que o voto útil é típico do primeiro turno, enquanto que o contra é típico do segundo. Ou, pelo menos, era assim até na última eleição. Agora estamos inaugurando uma prática nova: o voto contra já no primeiro turno.
Os dois primeiros colocados sofrem tanta rejeição que a maior parte dos seus votos são apenas votos contra o seu opositor, enquanto os candidatos com algum nível de aprovação ficam todos bem abaixo nas pesquisas. Os outros dois candidatos que ainda disputam uma vaga no segundo turno, a propósito, insistem em que só eles podem derrotar aqueles dois primeiros, ou seja, eles estão disputando justamente esses votos contra, de modo a garantir que, no final do processo, todo mundo fique decepcionado.
Que lição podemos tirar disso? A única que me ocorre é aquela que já foi ensinada por uma das mentes de maior expressão no nosso cenário político: “não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” E teve gente que riu quando ela falou isso!

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O que a redação do Enem pode ensinar sobre os debates eleitorais


charge: Sampaio

Tenho notado que os candidatos à cadeira presidencial, pelo menos aqueles que podem participar dos debates, têm discursos muito parecidos com os das redações do Enem. O que é justificável, afinal eles também estão sendo julgados pela sua competência em compreender uma questão de caráter social, selecionar, relacionar, analisar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista, aplicar conceitos de várias áreas do conhecimento para desenvolver o tema, elaborar uma proposta de intervenção, que já devia estar pronta em todos os programas de governo, e de quebra ainda demonstrar um bom domínio da língua e dos mecanismos de argumentação. Pode parecer muito para um concluinte do Ensino Médio, mas é o mínimo que se espera de um presidente da República. Pensando nisso, resolvi avaliar as falas dos candidatos e atribuir-lhes uma nota, como mero exercício de raciocínio.

O Coronel Ciro é o típico redação nota 1.000. Articula perfeitamente bem a norma culta, como em todas as suas aparições públicas em que não usa impropérios (ou seja, em muito poucas). Vale lembrar que o uso de baixo calão é um critério de anulação, o que nos lembra o quanto é tênue a linha que separa a genialidade da loucura. O candidato apresenta um excelente domínio das estruturas sintáticas, enriquece as respostas com referências e um vasto repertório sociocultural, e sempre atende ao tema da questão e à tipologia textual. Parece até que ele nasceu dentro de um debate e nunca saiu de lá. Na história recente do país, só é comparável ao Dr. Meu Nome É Enéas Carneiro.

A Blablarina, o Picolé de Chuchu e o Boulos, que ainda não conseguiu merecer nem um apelido, são os casos prototípicos do nível 4. Apresentam poucos desvios gramaticais e um bom domínio da sintaxe, trazem algum repertório sociocultural, atêm-se geralmente ao tema e ao tipo dissertativo-argumentativo, mas não saem do senso comum, é sempre aquele mesmo discurso engessado. Ou mumificado, para ser mais exato.

Alguns candidatos que não puderam participar dos debates, a julgar pelas entrevistas, ficariam com um honroso nível 3, ao lado do Henrique Me Chama Que Eu Vou Meirelles. Argumentação previsível, domínio mediano do gênero dissertativo e nenhum repertório sociocultural legitimado. Sim, não vale citar dados que não tenham embasamento em nenhuma área do conhecimento. Provas indiciais, por enquanto, só servem para condenar lideranças políticas barbudas, digo, corruptas.

Álvaro Dias também estaria no mesmo nível, se não desse sempre a mesma resposta para todos os temas. Por esse tangenciamento do tema, ele não pode passar do nível 1 na competência II, o que baixa bastante sua nota final. Abre o olho, candidato!

A mesma coisa acontece com Jair Ele Não Bolsonaro, que, quando não zera por fuga ao tema, ainda é penalizado na competência V por desrespeito aos direitos humanos. Como logo este ano isso deixou de ser um critério de anulação, ele é capaz de ficar num nível 0, nesse quesito, e ter o restante da prova avaliado normalmente. Mas também não vai muito mais longe nas demais competências. Sua melhor pontuação talvez seja na competência I, ou seja, no domínio da norma culta, na qual ele ficaria com uma bela nota 2. Para que se tenha uma ideia mais clara do que isso representa, imagine que o nível 1 seja a Dilma falando, nos seus momentos mais inspirados, enquanto que o nível 0 seria algo assim como a Weslian Roriz.

Por fim, o Cabo Daciolo, mesmo falando em línguas estranhas, ainda teria sua redação avaliada normalmente, se produzir pelo menos sete linhas em língua vernácula. Porém ele tem sua redação zerada pela presença de “parte desconectada”, o que eu chamo carinhosamente de “situação miojo”. Isso, claro, quando não zera por fuga ao tema, que este ano passou a ter prevalência sobre o critério anterior. Não é nada que deponha contra a sua proficiência em geral. Ele apenas não foi avisado que discurso religioso anula a redação. Mas se o Boçalnato vencer o pleito, ele pode ficar tranquilo, porque o candidato garante que isso é parte da doutrinação comunista, e promete abolir essa norma nos próximos certames. Glória a Deus!




sexta-feira, 13 de abril de 2018

Pater Noster


Com atraso de alguns meses é que recebo a notícia da polêmica em torno da tradução francesa do Pai Nosso. Sim, estamos falando da famosa oração que o Senhor nos ensinou, e da qual, de acordo com um grupo de crítica bíblica do Instituto Westar, apenas duas palavras seriam inequivocamente autênticas: “pai” e “nosso”. Conclusão que também me é duvidosa, uma vez que na versão de Lucas (Lc 11,1-4) não aparece nem sequer a palavra “nosso”…
La polémique: é a ANSA quem nos informa que em dezembro do ano passado a Igreja Católica da França alterou o trecho “não nos submeteis à tentação” para “não nos deixeis cair em tentação”, que é como aprendemos por aqui. De acordo com a agência de notícias italiana, a versão anterior fora adotada em 1966, mas sempre teria sido criticada “por sugerir que Deus era o responsável por submeter as pessoas às tentações”.
Foi o próprio Jorge Mario Bergoglio, vulgo Papa Francisco, quem teria pontificado que aquela não era uma boa tradução, posto que “o que nos induz à tentação é o satanás”. Dada sua infalibilidade nesses assuntos, seria recomendável que ele instruísse os autores dos evangelhos, ou quem sabe o próprio Cristo, porque esse texto tão comprometedor está lá nos originais. Sim, eu conferi.
Confesso que mesmo antes de aprender a diferenciar as conjunções aditivas das adversativas, e lá se vão boas décadas, já achava estranha a construção “não nos deixeis cair em tentação, MAS livrai-nos do mal”. O que esse “mas” está fazendo aí, se não há nenhuma oposição entre “livrar do mal” e “não deixar cair em tentação”? Qual não foi minha surpresa quando, depois de aprender os primeiros rudimentos de latim e de grego, fui percorrer o texto original do evangelho de Mateus (Mt 6,13), e notei que a conjunção de fato estava lá! Mais grave: ao destrinchar o texto, nota-se que ela está corretamente aplicada.
Assim ouvi entoar o canto gregoriano, em bom latim: et ne nos inducas in temptationem, SED libera nos a malo. E assim consta na minha Kainḕ Diathêke (o original grego do Novo Testamento, presente de uma das minhas inesquecíveis professoras da língua helênica): kaì mḕ eisenénkeis hēmâs eis peirasmón, ALLÀ rhŷsai hēmâs apò toû ponēroû. O texto de Lucas não contém a segunda parte do fraseado, mas conjuga o mesmo verbo eisenenkeîn, que vem a ser a forma de aoristo segundo do verbo eisphérō, formado pela aglutinação da preposição eis e do verbo phérō, o que quer dizer literalmente “levar para” (tive de consultar isso, é claro, pois infelizmente a gramática grega não é assim tão inesquecível quanto seus professores…). O verbo latino é bem mais claro, pois além de ser composto pela preposição in e o verbo ducĕre, literalmente “conduzir para dentro”, é também o étimo do nosso verbo induzir. A se julgar confiável o testemunho dos evangelistas, o que Jesus pedia ao Pai era que não o induzisse em tentação.
Pois bem, aí está a tal polêmica. Levando-se em conta que Deus é onipotente,  não me parece haver uma diferença tããão grande assim entre induzir em tentação” e “deixar cair em tentação”, já que de uma forma ou de outra tudo depende da intervenção da Sua vontade soberana. Confesso que não compreendo como seria possível alguma coisa acontecer contra a vontade de Deus, se Ele, além de onipotente, é o criador de tudo quanto existe. E nem me venham com aquele papinho de “livre-arbítrio”, que isso não cola… Por uma simples questão de lógica, ou bem não existe nenhum criador onipotente e onisciente, ou tudo o que existe é exatamente como esse criador quer que seja, incluindo aí todas as opções que possamos porventura escolher com nosso hipotético “livre-arbítrio” e todas as consequências inevitáveis dessas escolhas. Como abraço tranquilamente a primeira hipótese, todo embate teológico, para mim, não passa de questiúncula. Mas se é polêmica o que o leitor deseja, eu posso oferecer uma melhor.

Ficar espiolhando minúcias textuais, tarefa a que são afeitos os literatos e, com maior consequência prática, os juristas, é coisa que pode facilmente nos levar a reverenciar a letra, que mata, em detrimento do espírito, que vivifica, como nos diz o apóstolo. Em outras palavras, é preciso diligência e discernimento para se extrair do texto aquilo que o seu autor quis dizer”, o que exige, entre outros cuidados, a análise, ainda que perfunctória, do seu contexto. Ocorre que, ao se fazer isso no evangelho que serve de base para o estabelecimento do texto, as palavras de Jesus parecem dizer uma coisa muito diferente do que a tradição eclesiástica estabeleceu. Alguém aí já leu os dois versículos que vêm imediatamente antes do Pai Nosso? Vou facilitar para o leitor, transcrevendo as palavras do Cristo:

7Nas vossas orações não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por falarem muito, serão atendidos. 8Não façais como eles, porque o Vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lhe pedirdes.”

Mas faz algum sentido que Jesus acabe de ensinar que é inútil repetir mecanicamente palavras memorizadas e logo em seguida se ponha a ensinar uma oração que deve ser memorizada e repetida mecanicamente per omnia sæcula sæculorum? Ora, para sermos razoáveis, o contexto nos obriga a entender que a prece que se seguiu foi um improviso, e não um texto para ser memorizado e repetido ipsis litteris. O que Jesus provavelmente tentou dizer é que se deveria imitar sua atitude, ou seja, conversar espontânea e intimamente com Deus, da mesma maneira como se conversaria com seu próprio pai. Dessa perspectiva, portanto, aqueles que vivem repetindo “a oração que o Senhor nos ensinou” devem ter entendido tudo errado.